Mortes de Botos por redes de pesca levanta alerta para risco de extinção

As imagens chocantes de um Boto Pescador com feridas, sangue e rasgos na pele causadas por uma rede de pesca correram as mídias sociais esta semana no sul de Santa Catarina e trouxeram a tona, mais do que nunca, a luta pela proteção dos Botos de Laguna. Morto por afogamento, preso numa rede de emalhe, próximo à desembocadura do rio Tubarão, no Complexo Lagunar, o Boto (espécie Tursiops Truncatus) era um antigo conhecido dos pescadores locais, chamado carinhosamente de “Tufão”.

 

Com uma população residente de apenas 47 Botos, o grupo vem sofrendo com a pesca predatória e clandestina em locais de concentração destes animais, inserida na região da Lagoa Santo Antônio dos Anjos e Canal dos Molhes, próximos à desembocadura do Rio Tubarão, local onde ocorre os maiores acidentes com redes de pesca.

 

De acordo com a Polícia Militar Ambiental o animal foi encontrado morto boiando, enrolado numa rede, por um pescador. “Não temos como saber se ele se emalhou dentro ou fora da zona de proteção”, diz o comandante Omar Côrrea Marotto, da 3ª Companhia da Polícia Militar Ambiental, em Laguna.

 

A legislação atualmente permite dispor a rede de emalhe em 1/3 do rio, um quilômetro acima da desembocadura do rio, sendo que os outros 2/3 devem estar livres. Clandestinamente, alguns pescadores atravessam a rede em toda a largura do rio, não dando chances para o boto escapar. “Como eles dispõem a rede muito embaixo a água fica impossível para o animal se desvencilhar”, explica Marotto.

 

Em meio a toda polêmica um novo projeto de lei ( nº033/18) acaba de ser sancionado pelo prefeito de Laguna, Mauro Candemil, de autoria do próprio executivo, aprovado por unanimidade na Câmara de Vereadores, proibindo a pesca com rede de emalhe, de qualquer modalidade, a partir da entrada do Canal da Barra de Laguna (Molhes), em toda extensão de seu canal de navegação e as águas que costeiam o lado norte da Lagoa Santo Antônio dos Anjos até os locais denominados Arial e Arrebentão. Além disso também fica proibida a pesca para captura de bagres através de redes de emalhe no Rio Tubarão, a partir da divisa com Capivari de Baixo e Tubarão, até a saída para o Molhes da Barra e sua fronteira com o Oceano Atlântico. Os infratores estão sujeitos às penalidades impostas pela lei de crimes ambientais (Lei nº9.605/98).

 

Esse já é o terceiro boto morto pela mesma causa este ano. Desde 2017 foram oito mortes. Destas, pelo menos cinco por redes de pesca. O número de indivíduos, segundo o Coordenador do Projeto Boto Pescador e do Projeto de Monitoramento de Praias – PMP, o doutor Pedro Castilho, tem se mantido em quantidades semelhantes nos últimos anos. “Porém agora com o PMP conseguimos chegar antes e analisar as causas da morte com maior precisão”, afirma.

 

Conforme dados do Projeto Boto Pescador estima-se que nasceram em 2018 e 2017 cerca de 10 botos. As mortalidades acompanham o número de nascimentos. Isso vai equilibrando o tamanho da população. “É claro que a gente não sabe até quando isso vai se equilibrar, porque temos o problema da mortalidade de animais machos reprodutores adultos. Isso causa uma preocupação séria”, reforça o biólogo, professor do campus em Laguna da Universidade do Estado de Santa Catarinade – UDESC e coordenador do Instituto Ambiental Boto Flipper, Arnaldo Russo.

 

Pesquisadores do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina comprovaram a inexistência de genes de botos de outros lugares nos botos de Laguna, ou seja, os botos machos daqui reproduzem-se com fêmeas dos outros locais, mas os botos fêmeas de Laguna não reproduzem com machos dos outros locais. “Entendendo um pouco essa dinâmica, fica evidente que mortalidades de indivíduos adultos e ativos sexualmente tendem a colocar em cheque a continuidade da população, além de aumentar as taxas de cruzamento interno (endogamia), podendo afetar o equilíbrio da população”, destaca Russo.

 

Pedro Castilho compartilha a preocupação com a morte em certas faixas etárias e outros fatores que podem acelerar a morte destes animais. “Verificamos que a mortalidade acidental por redes de pesca sempre existiu, mas agora conseguimos detectar com maior precisão (as pessoas se comunicam mais rapidamente). O que me preocupa é a mortalidade em faixas etária basais (animais jovens não reprodutivos) promovendo um hiato no futuro da população e potencializando redução na diversidade genética. Outro aspecto é que as necropsias têm nos mostrado que os animais estão com outras patologias, infecções, que indicam alguma deficiência imunológica ou uma batalha constante contra agentes infeciosos”, afirma.

 

A captura acidental em redes de emalhe tem se mostrado, nos últimos anos, uma das principais causas, que agregadas a outras tão importantes, podem resultar no desequilíbrio populacional e um possível risco de extinção nos próximos 50 anos, de acordo com o pesquisador e professor da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Jorge Daura.

 

“Não adianta só proibir a rede de emalhe, mas também pensar de forma mais abrangente. Precisamos regulamentar uma série de outros parâmetros. Não temos nenhum plano de manejo para situações mais extremas como um provável vazamentos de produtos tóxicos ou químicos durante o transporte da balsa, por exemplo. Nossa fragilidade ambiental é muito grande. A pesca clandestina é só a ponta do iceberg, temos outros problemas tão graves como a contaminação das lagoas e estresse dos animais, que não podemos esquecer. São várias as frentes que precisam ser atacadas de forma conjunta”, ressalta o biólogo Arnaldo Russo.

 

Castilho complementa afirmando que a solução só pode ser viável quando todos olharem para os outros problemas existentes no Complexo Lagunar. Segundo o pesquisador, o risco de extinção local existe, mas não acredita que vá chegar a esse ponto. “A solução não é simples nem tampouco rápida, requer muita, mas muita dedicação e esforço coletivo. Laguna precisa compreender que possui um “diamante” que precisa ser lapidado, cuidado e mantido com muito zelo e não será apenas evitando redes no rio que salvará a população definitivamente. Primeiro precisamos reconhecer e mudar a forma de ver o Rio e a Lagoa de Santo Antônio dos Anjos”, finaliza.

 

A Pesca com auxílio dos Botos

 

Cerca de metade dessa população local de Botos Pescadores, entorno de 25, caracterizada por ser extremamente residente, possui um comportamento peculiar por realizar a pesca cooperativa com os pescadores artesanais da região, onde eles auxiliam os pescadores encurralando o cardume de peixes e indicando por meio de uma sequência de sinais o momento exato de jogar a rede (tarrafa). Ambos se beneficiam da pesca, pois o Boto se alimenta dos peixes que não ficam na tarrafa do pescador. Esta atividade de pesca tornou-se patrimônio da cidade de Laguna através da lei municipal N° 521, de 1997.

 

Cada boto é conhecido por seu apelido pelos pescadores. Em conversa com o grupo local que pratica a pesca cooperativa, eles afirmaram que o “Tufão”, morto neste final de semana emalhado no rio, era filho do “Borracha”, irmão do “Batman” e do “Robin” e ainda neto do “Tafarel”. Todos esses apelidados pelos próprios pescadores.

 

A Pesca com auxílio dos Botos recebeu recentemente o certificado de registro de patrimônio cultural imaterial de Santa Catarina. O cetáceo já é patrimônio do município, entretanto, a cultura que o envolve não.

 

A chancela foi publicada no Diário Oficial do Estado e estará no Livro de Registro dos Saberes, que institui as formas de Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial ou Intangível, que constituem o Patrimônio Cultural de Santa Catarina. Neste contexto, a pesca com auxílio dos botos está inscrita como conhecimento enraizado no cotidiano da comunidade.

 

“Caso ocorra a Com a extinção dos botos de Laguna, é certo que as relações inter específicas (entre botos e humanos) deixará de existir, as relações sociais entre os pescadores e bem como os conhecimentos dessa cooperação e o seu repasse cultural”, afirma Russo.

 

Qual a função dos Botos no ecossistema local?

 

Eles são fundamentais para manutenção e equilíbrio do ecossistema, por serem no interior do estuário, os predadores de topo da teia alimentar. “Apesar de ocuparem o topo dessa teia, os organismos que estão na base são tão fundamentais quanto os botos. Sem o fitoplâncton, não teria o zooplâncton, que não teria como sustentar a população de peixes e por consequência os botos”, diz Russo.

 

A mortalidade incidental (ou criminosa) dos cetáceos tem efeitos drásticos, pois conforme o biólogo afirma, isso envolve outro conceito ecológico de estratégias de crescimento das espécies. “Os botos são espécies estrategistas (têm crescimento lento, cuidado parental, prole reduzida, longo período de maturidade sexual) e todos esses fatores colocam em cheque o ecossistema, quando em mecanismos de pressão Top-down (aquele em que se reduz o organismos topo de cadeia), tornando a recuperação das espécies estrategistas de forma bastante lenta, podendo ainda comprometer a viabilidade”, conclui.

 

Dessa forma os Botos por si só são importantes por manterem equilíbrio no ecossistema, mas outro fator ainda mais emblemático para a ecologia, é o isolamento das espécies. De alguma forma, os animais de Laguna deixaram de manter taxas de reprodução com indivíduos de outras localidades, causando ao longo do tempo um isolamento da espécie, que acaba trocando genes somente com indivíduos da mesma população, diminuindo a variabilidade genética e comprometendo esse grupo, com a diminuição da população.

 

“Entendendo um pouco essa dinâmica, fica evidente que mortalidades de indivíduos adultos e ativos sexualmente tendem a colocar em cheque a continuidade da população, além de aumentar as taxas de cruzamento interno (endogamia), podendo afetar o equilíbrio da população”, ressalta.

 

Já com relação aos aspectos sócio culturais, é notável a coadaptação dos botos e pescadores, que é sim uma característica ímpar. A adaptação dos petrechos de pesca (tarrafas de argola, embarcações, etc), posicionamento dos pescadores (embarcados e desembarcados) e principalmente a organização social no momento da pesca (vagas, prioridades, localização das embarcações, etc) são aspectos culturais que se perderão, caso ocorra a extinção.

 

“Outro aspecto que deve ser considerado é o turismo da cidade de Laguna, que se apoia também no histórico da pesca cooperativa e da forma como acontece e que tem muito a perder economicamente e socialmente caso a população dos botos de laguna venha a desaparecer do nosso estuário”, alerta Russo.

 

Conheça os projetos que existem para proteção e conservação dos Botos Pescadores:

 

Projeto Boto Pescador: é uma iniciativa do Instituto Conceito Ambiental em parceria com a Laboratório de Zoologia da UDESC Laguna, que visa fomentar a pesquisa científica sobre o boto pescador, buscando subsidiar com elementos técnicos à conservação da população. Seja através de publicações científicas, ações de extensão ou incentivando políticas públicas para região.

 

Projeto “A Paisagem Sonora da Pesca Cooperativa na cidade de Laguna”: desenvolvido pela ONG Instituto Boto Flipper em parceria com o LACMAM (Laboratório de Acústica e Meio Ambiente) da USP, o projeto começou em janeiro de 2017 e faz o monitoramento sistemático ao longo do dia e registro da paisagem sonora sub aquática, com hidrofones produzidos pelo próprio laboratório da USP, todo com tecnologia nacional. Registra o som dos botos mas também os sons dos peixes, os produzidos pelo homem, ou seja, suas embarcações dentro da água e suas intensidades, além do som da própria tarrafa na pesca cooperativa.

 

Botos e as leis

 

– Foi sancionado o projeto de lei Nº 033/18, do poder executivo, que dispõe sobre a proteção da população de Tursiops Truncatus (Boto Pescador), através da proibição de tipos de artes de pesca consideradas nocivas a espécie.

 

– No dia 25 de maio, é lembrado como o Dia Estadual da Preservação do Boto Pescador. A data comemorativa estadual foi instituída pela Lei 17.084, de 12 de janeiro de 2017, a partir de um projeto de autoria do deputado José Milton Scheffer. O objetivo é promover ações de conscientização sobre a importância da preservação da espécie para o desenvolvimento cultural e econômico da região. O projeto de lei foi sugerido por alunos da Escola de Educação Básica Ana Gondin, de Laguna, participantes de 21ª edição do Parlamento Jovem catarinense.

 

– A cidade do litoral catarinense detém o título de “Capital Nacional dos Botos Pescadores” (Lei 13.818/2016) por desenvolver a pesca cooperativa da tainha com o golfinho da espécie Tursiops truncatus. Os botos, em um movimento sincronizado, cercam o cardume, o pescador aproveita e lança a tarrafa ao mar. Apesar de ser avistado em todo o litoral brasileiro, só na região do Canal da Barra, nos Molhes, o boto apresenta esse comportamento.

 

– De acordo com a lei 521/97, o boto é considerado patrimônio natural da cidade, o que promove o poder de proteger o animal, proibindo atividades que possam causar danos à espécie.

 

Texto: Gisele Elis (MTB 6822)

Fotos: Elvis Palma